04/02/2012

A Universidade da Fraude no Maranhão*

Charge de Cesar Teixeira



Por Wagner Cabral da Costa


Universidade da fraude, assim chamaram. A mão maquiavélica de Vitorino. “Uma porca será eleita,

até pro Senado, se ele desejar” – diziam (Adailton Medeiros).



Os verdadeiros porcos que me perdoem, mas falar de sujeira, imundície, podridão e, por extensão, corrupção, sem a metáfora suína tornou-se difícil na cultura ocidental. Assim, por exemplo, o poeta e jornalista Adailton Medeiros, na novela Revoltoso Ribamar Palmeira (1978), serviu-se dessa imagem para referir-se à estruturação da Universidade da Fraude como um dos sustentáculos fundamentais da oligarquia vitorinista, por meio da qual “diplomavam-se” periodicamente os dotôres deputados, senadores e governadores do Maranhão. Ambientada na cidade de São Luiz, a novela narra a triste estória do retirante Ribamar, que foge do campo, expulso pelas agruras da fome e do latifúndio, e migra para a capital, onde participa da Greve de 1951, mobilização popular contra a fraude eleitoral que “diplomou” governador o caxiense Eugênio de Barros.


O fato é que imagens similares povoavam os imaginários políticos do período, no Brasil e no mundo. No Rio de Janeiro, o jornalista Carlos Lacerda atacava diuturnamente o retorno de Getúlio ao poder, acusando a existência do “mar de lama” do Palácio do Catete, criminalizando e animalizando o presidente, numa escalada que levou à crise política e ao suicídio de Vargas (1954). Na Inglaterra, George Orwell publicava A Revolução dos Bichos (1945), crítica alegórica dos rumos da revolução soviética, que devorava seus próprios ideais apenas para instituir uma nova classe dominante no reino animal (os porcos stalinistas).


Em verdade, a própria idéia da porca senadora possuía raízes mais antigas, pois constituía a (sub)versão local da lenda do cavalo Incitatus, preferido do Imperador Calígula, que o mimava com criados, alimentos e mantos púrpura (exclusivos da corte), chegando mesmo a nomeá-lo senador do império, numa atitude de total menosprezo para com a aristocracia romana. Idéia que se concretizou em 1955, quando Vitorino Freire “diplomou” senador pelo Maranhão o empresário paraibano Assis Chateaubriand (dono da Cadeia dos Diários Associados), depois de negociar a alto preço a renúncia coletiva do titular (Antônio Bayma) e dos suplentes. Na ocasião, aliás, diante da recusa inicial do TRE-MA em aceitar sua candidatura, o cidadão Chatô tachou o egrégio tribunal de “Vara de Porcos”, em admirável demonstração do ditado popular do “sujo falando do mal-lavado”.


Mas o caso Chateaubriand estava longe de ser único ou isolado, pois a maioria política do vitorinismo era sabidamente formada, graduada e pós-graduada na Universidade da Fraude, como a verificada na 41ª Zona Eleitoral nas eleições de 1954. Nessa “escandalosa” fraude dos “feudos eleiçoeiros” foi beneficiado o bacharel José Sarney, filho de juiz e apadrinhado de Vitorino, que obteve a suplência de deputado federal, além de ganhar um de seus primeiros apelidos públicos, “Zé, meu filho”, por conta da cupidez com que o pai costumava separar votos para o rebento durante as apurações. Nessa “escola”, portanto, foi iniciado e “diplomado” aquele que hoje é o mandatário da oligarquia estadual.


Do parlamento, a alegoria suína se espraiou, transferindo-se para o poder judiciário, denunciado em sua subserviência e cumplicidade com a oligarquia de Vitorino, ao promover a fraude dentro da própria justiça eleitoral, supostamente a maior responsável pela lisura e honestidade dos pleitos. Assim, ainda na Greve de 1951, o senador oposicionista Clodomir Cardoso alertava a Nação sobre os desmandos cometidos: “No Maranhão, em suma, não houve processo de fraude, dos que desmoralizaram o nosso passado, em matéria eleitoral, que não tivesse revivido. Mas nada disso bastou para o simulacro da vitória governamental. O papel principal na farsa veio a ser representado pelo Tribunal Regional do Estado… que perseverou de servir antes o Governo que a Justiça” (discurso no Senado Federal, em 11/06/1951). Um tom mais ácido e caústico havia sido adotado meses antes pelo jornalista Erasmo Dias, quando ainda eram apuradas as urnas (O Combate, 22/11/1950):

Justiça W.C.


Justiça de dois pesos e duas medidas, que confirma, iniludivelmente, a arguição de suspeição de um tribunal que, pela sua maioria, se afunda, definitivamente, no conceito público, degradando a função de julgar, aviltando a toga e desonrando, no cinismo dos desfibrados, séculos de tradição jurídica.


Justiça de lameiro e de pocilga, onde rebolam suínos de engorda, cevados na ração abundante que Palácio distribui.


Justiça de prostíbulo e lupanar, onde sátiros despudorados saracoteiam, bêbados, na lascívia que a si mesmos lhes provoca a nudez moral a que se reduziram, para a orgia do descaramento e do cinismo.


Justiça de sentina e de cloaca, onde os azes da corrupção e da peita [suborno] se comprazem no aspirar dos gases mefíticos, que lhes inebriam a depravada sensibilidade.


Justiça, enfim, de um Tribunal onde há juízes cujas iniciais lhe indicam o verdadeiro sentido e legítima significação – W.C.

Justiça W.C.!


Os vícios do processo eleitoral não se restringiam, obviamente, ao Maranhão, fazendo parte do sistema político brasileiro. Tanto que a fraude praticada nas eleições de 1950 pelo TRE-MA foi depois legitimada e confirmada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), num jogo de pressões em que prevaleceu a posição política do PSD (maior partido do país) a favor de Vitorino Freire. Em outra chave de leitura, a revista Careta (semanário humorístico de circulação nacional) chamava a atenção para as possibilidades de fraude nas eleições presidenciais, a exemplo da charge intitulada “Caixa de Surpresa” (publicada em 09/04/1955), em que o Jeca (personagem-símbolo do povo), com o voto em mãos, olhava pensativo para a urna, enquanto era observado pelo presidente Café Filho. O diálogo entre os dois é elucidativo: “Café Filho – Agora a gente já sabe quem vai entrar na urna!” [sobre a definição de quem sairia candidato à presidência], ao que o Jeca replicava: “Mas o ‘difíci’ é ‘sabê’ quem vai ‘saí’ dela!”.


O (e)leitor poderia pensar, a esta altura do texto, que este trata-se de um artigo “saudosista”, de tempos que não existem mais. Ledo engano. A breve recapitulação histórica da Universidade da Fraude serve como ponto de partida para pensarmos a atualidade dessas práticas no sistema político brasileiro e, muito especialmente, em nosso estado. Ou, em outros termos, como a Universidade da Fraude se constitui num dos sustentáculos centrais do poder da oligarquia Sarney no Maranhão, garantindo artificialmente a longevidade de um esquema político (ou máfia criminosa) que, em condições de livre competição eleitoral, já teria sido varrido da política brasileira.


Por questões de economia de espaço, não me deterei nos episódios específicos de fraude denunciados nas eleições de 2010, muitos dos quais foram apontados na edição anterior do Vias de Fato e em outros espaços da imprensa alternativa. Fraudes escandalosas e bem documentadas, que deixam qualquer analista isento de olhos arregalados diante de tanto desmando, arbitrariedade, abuso de poder e certeza de impunidade da oligarquia Sarney.


O ponto central do argumento é mais amplo, em visada de média duração. Trata-se de pensar como, ao longo do processo de redemocratização, após o fim da ditadura militar, a oligarquia se manteve no poder à custa do falseamento sistemático da “verdade eleitoral” e da vontade do eleitorado, ou seja, às custas da manutenção dos mecanismos da Universidade da Fraude. Em notas rápidas, vejamos como foi o processo de “diplomação” da oligarquia.


1. Na 1ª eleição da redemocratização (1982), o grupo dominante, organizado no PDS e amparado no controle total da máquina pública, além de contar com a vantagem adicional do voto vinculado, elegeu sem maiores dificuldades Luís Rocha para o governo estadual, com 64% dos votos totais, enquanto o principal candidato de oposição, Renato Archer (PMDB) ficou com apenas 17% dos votos.


2. Na 2ª eleição (1986), a formação da Aliança Democrática (PMDB/PFL) no plano nacional e a presença de Sarney na presidência da República possibilitaram um acordo com setores da oposição em torno do nome de Epitácio Cafeteira (PMDB), eleito com 81% dos votos válidos. João Castelo (PDS, já dissidente da oligarquia) obteve 16,5% dos votos e Delta Martins (PT) apenas 2,5%.


3. Já na 3ª eleição (1990), observa-se pela primeira vez o aumento da competição político-eleitoral, com a presença de duas candidaturas de oposição com maior densidade. No 1º turno, João Castelo (PRN) venceu com 36,6% dos votos, enquanto o candidato da oligarquia, Edson Lobão (PFL), ficou com 28,3%. Pela Frente de Oposição Popular, Conceição Andrade (PSB) chegou a 15,2% dos votos totais. Somente a muito custo, com abuso de poder político e econômico, a oligarquia venceu no 2º turno, “diplomando” Edson Lobão. Esta foi, de fato, a 1ª eleição competitiva da redemocratização.


4. Em 1994 (4ª eleição), novo pleito competitivo e duramente disputado. No 1º turno, a filha da oligarquia, Roseana (PFL), ficou com 29,8% dos votos totais, Cafeteira (PPR) obteve 19,4% e Jackson Lago (PDT), 12,7%. No 2º turno, Roseana Sarney “venceu” por uma diferença de apenas 18 mil votos, em eleição assim resumida pelo jornalista Jânio de Freitas: “O TRE maranhense não presidiu eleição, presidiu fraude” (Folha de São Paulo, 28/06/1995).


5. Na 5ª eleição (1998), apoiada na aliança com FHC (PSDB) e no casuísmo da reeleição, além da intensa propaganda pessoal e uso da máquina pública, Roseana Sarney (PFL) foi reeleita com 66% do votos. Cafeteira (PPB) obteve 26,3% e Domingos Dutra (PT) ficou com 6,4%. Essa foi a única eleição “tranquila” para a oligarquia no período 1990/2010.


6. Em 2002 (6ª eleição), a “vitória” no 1º turno de José Reinaldo (PFL, 51% dos votos), então candidato da oligarquia, só foi possível porque o TRE, em decisão “controversa”, anulou os votos atribuídos a Ricardo Murad (PSB, então dissidente). A decisão judicial revelou-se fundamental para a continuidade do domínio oligárquico, evitando a realização de um 2º turno contra Jackson Lago (PDT, 42,5%), com a inevitável polarização anti-sarneísta.


7. Na 7ª eleição (2006), aumento da competição eleitoral, com o adicional da ruptura do governador José Reinaldo, que colocou a máquina pública a serviço do projeto das oposições desligadas. Roseana Sarney (PFL) obteve 47,2% dos votos, Jackson Lago (PDT) ficou com 34,3% e Edson Vidigal (PSB) com 14,2%.


No 2º turno, houve a 1ª vitória da oposição desde o início da redemocratização. Uma vitória de Pirro, pois dois anos e três meses depois de assumir o cargo de governador, Jackson Lago teve o mandato cassado por um “golpe de estado judiciário” no TSE, que, tal como em 1951, cedeu às pressões políticas em favor da oligarquia.


8. E, enfim, 2010, cuja principal novidade foi a existência de duas candidaturas competitivas da oposição, Flávio Dino (PCdoB – 29,5% dos votos) e Jackson Lago (PDT – 19,5%), ambas inicialmente com possibilidades de chegar ao 2º turno. Ademais, o candidato pedetista passou toda a eleição sub judice, pois seu processo da “ficha limpa” foi “esquecido” numa gaveta qualquer do TSE, só sendo julgado na véspera da eleição (num engavetamento judicial bastante benéfico à oligarquia).


A desigualdade de condições foi enorme, pois Roseana Sarney (PMDB) contava com o monopólio da mídia, a máquina do estado, um orçamento multimilionário (R$ 24 milhões, 8 vezes mais que o 2º colocado) e sua campanha praticou toda sorte de abusos de poder político e econômico. E mesmo assim, a filha da oligarquia “venceu” por apenas 0,08% dos votos, numa diferença de menos de 5 mil votos para o somatório dos demais – “vitória” que coroou a sequência histórica da Universidade da Fraude, ao VETAR o VOTO LIVRE do eleitorado. Por quanto tempo mais a cidadania será cerceada? Pode-se mesmo falar em democracia no Maranhão?

Em síntese, desde 1990, o aumento da competição política, com a presença de candidaturas competitivas de oposição (de variados matizes políticos), tornou a oligarquia Sarney cada vez mais DEPENDENTE da Universidade da Fraude, a qual se constitui, de modo crescente, em um recurso fundamental (ou mesmo no último recurso) para minimizar a incerteza eleitoral e garantir a continuidade do mando oligárquico e patrimonial, encrostado ainda na dependência do governo federal (de que não pudemos falar).


Por fim, retomando o citado senador Clodomir Cardoso, podemos suspeitar que, nas duas últimas décadas, “no Maranhão, em suma, não houve processo de fraude, em matéria eleitoral, que não tivesse revivido”, ou mesmo sido reinventado, como o “emprenhamento” de urnas eletrônicas ou a manipulação de resultados eleitorais. E a vara de porcos parece inda pastar e grunhir calmamente nos campos…


*Artigo publicado na 14º edição do jornal Vias de Fato (em novembro de 2010)



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fique à vontade e seja bem vindo ao debate!