10/04/2010
O VAZIO
Luís Diniz é meu amigo e contemporâneo de movimento estudantil no CESI-UEMA, formou-se em geografia e militou no Centro Acadêmico de Geografia e no Diretório Central dos Estudantes "Josias Moraes" . Já mostrava grande habilidade com as palavras escrevendo para os informativos do movimento. A vida o levou a ser guarda de trânsito na Imperosa e hoje é policial civil. Claro que é competente profissionalmente, mas tá claro que seu talento nato é para as letras. Tire suas conclusões:
O Vazio
Não lembrarei a data certa - se véspera ou noite de Natal -, nem o teor exato da conversação. Eu estava escovando os dentes quando o telefone tocou em cima da fruteira abandonada no quarto também abandonado - o primeiro compartimento da casa, na verdade um espaço amplo que fora originalmente projetado para ser usado como comércio, Mini Box, essas coisas. Ainda com a escova de dentes na mão e sentindo o gosto menta do Kolynos na boca, eu puxei o fone e sentei ao lado da fruteira, no piso vermelho um pouco empoeirado. “Alô”. Do outro lado da linha ninguém respondeu, a não ser o barulho de um cachorro latindo e de uma televisão ligada no Globo Repórter, exatamente o programa que meu irmão assistia na sala, não tão perto para poder ouvir-me ao telefone, nem tão longe que eu não pudesse escutar o Sérgio Chapelin anunciando o conteúdo do programa daquela sexta, algo do tipo Os Mistérios da Vida Submarina no Arquipélago de Fernando de Noronha. “Alô”, eu disse novamente, enquanto o Chapelin chamava os comerciais, e já ia bater o fone, mas eis que antes de tocar a musiquinha tema do Globo Repórter uma língua meio embolada respondeu: “Oi, alô, tudo bem?” Uma voz feminina, madura, um pouco descoordenada. E antes que eu respondesse: “Com quem eu falo?” “Eu é que pergunto com quem eu falo”, respondi. A voz disse que chamava-se Magnólia e estava tentando ligar para a casa de uma amiga. Teresa era o nome da tal amiga. Depois completou: “Acho que tá dando linha cruzada. Mas... como é seu nome mesmo?” “Ricardo”. Não, eu não ia dizer meu nome verdadeiro. Podia muito bem ser um trote. Uma amiga de colégio se passando por uma mulher bêbada para me pregar uma peça. “Então, Ricardo. Não é aí que mora a minha amiga Teresa não, não é? Ou será que é?” “Não, não é não". Me pediu desculpas. Não queria incomodar. Mas é que a Teresa tinha dado aquele número para ela. “Deve ter dado errado então.” “Pois é”. “Então tudo bem, dona Magnólia, vou desliga o telefone.” “Não, espera aí.” Ouvi um barulho que supus ser o de um dedo melado de batom bolinando em cubos de gelo dentro de um copo de wisk. “Cê tá bebendo?”, perguntei? “Tô, bebê - ela disse, enquanto eu imaginava ter ouvido um estalo de língua entre lábios -, tô bebendo Passport com gelo de água de coco. Quer um pouquinho?” “Não minha senhora... Vou desligar.” “Espera, rapaz, vamos conversar um pouco. Tô sozinha e triste aqui do outro lado da linha. Meus filhos estão viajando pra Salinas e eu fiquei em casa só com o cachorro e o papagaio...” Depois de uma pausa, provavelmente para um gole de Passport, ela disse que o marido também não estava em casa. Tinha ido pescar tambaqui no açude da Chácara Menina Mar Linda com um grupo de amigos. Segundo a mulher, havia cinco natais que era sempre assim: os filhos viajando, o marido pescando e ela sozinha em casa, bebendo e fumando sob o ar condicionado do quarto do casal. Por isso ligou pro primeiro número que lhe veio à mente. Queria falar com alguém, passar o tempo, espairecer. E principalmente preencher um tal de vazio. “Que vazio é esse?”, perguntei. “O vazio existencial, menino da voz bonita. O vazio que maltrata a gente, que impede a gente de viver bem. Mas você não deve saber o que é isso. Você parece jovem. Aliás, quantos anos você tem?” Eu não menti: quatorze. Ela tossiu do outro lado e disse que era uma idade linda. Uma idade que não tinha vazio nenhum pra preencher. “Você está na flor da idade, mocinho. Aposto que é um rapaz bonito. Você tá sozinho em casa?” “Não, tô com meu irmão, mas minha mãe e meu pai tão viajando.” Escutei um som abafado de campainha. Ela pediu um tempo, uns dois minutos. Depois voltou mastigando. Era uma pizza que havia encomendado. Perguntou se eu aceitava e eu disse que não. Então pôs-se a falar novamente sobre o tal vazio existência. Os ciúmes do marido, os filhos problemáticos, a mesmice da vida de dona-de-casa, o desejo de largar aquela vida, estalar os dedos e desaparecer. Por fim, perguntou se eu não estava disposto a preencher o tal vazio. “Talvez”, eu disse, e perguntei de que modo poderia fazê-lo. “É muito fácil. Você vem aqui em casa pra beber comigo. A gente conversa. Você me abraça bem forte, porém devagar. Isso fará com que eu fique bem molenga e me abra totalmente pra você preencher o meu vazio”. “Mas o que eu boto dentro desse vazio?” “Tua força, tua energia, tua raiva, bota tudo que você tiver, coração.” “Tá bom então.” “Você vem?” Perguntei onde ela morava. “Na 15 de Novembro, perto da Assembléia de Deus”. “Tô indo, viu. Me espera aí”. Bati o telefone. Minha cabeça estava um pouco tonta. Fui até a sala e sentei no sofá olhando pra televisão. Meu irmão não estava mais: tinha saído pra escovar os dentes. Fiquei olhando as letrinhas subindo no encerramento do Globo Repórter. Tive a impressão de que elas saiam da tela e continuavam subindo até o telhado. Do telhado batiam na estante. Da estante batiam no sofá e depois em outros cômodos. Algumas resvalavam na minha cabeça e seguiam procurando outras tabelas. Em pouco tempo a sala estava repleta de créditos finais do Globo Repórter. Foi quando o telefone tocou e meu irmão, voltando da pia com a escova de dentes na mão, atendeu. “Alô”, ele disse, enquanto na TV a Lílian Witti Fibe chamava as notícias do Jornal da Globo. “Alô”, disse novamente, e eu, meio zumbi, já sentia agoniado uma sensação de vazio crescendo dentro de mim. O
Pois é Hermes,Luis Diniz é um dos bons cronistas da região!Talvez o melhor!
ResponderExcluirTece as palavras com grandeza e conduz o leitor ao plano do imaginário com direito a passagem de ida e volta pela TAM.
É um cabra safado (título honorífico) que faz lírico o tragi-cômico do nosso povo luso-afro-tupiniquim.
Já está na hora de selecionar o que há de melhor do bamburro de Diniz e transpor para um livro.
Talvez, até uma coletânia dos nossos cronistas pela Ed.Ética de Adalberto.Onde obviamente Diniz não pode faltar.
Fraterno abraço,
prof.Magno Urbano
Boa ideia essa da coletânea "Cronistas da Vila do Frei", professor Magno. E olhe, seu nome também não pode ficar de fora! Um abraço.
ResponderExcluir