09/08/2011

30 anos sem Glauber Rocha

Do blog de Frederico Luís

por André Setaro

Neste aziago mês de agosto, no vindouro dia 22, completa 30 anos (três décadas nada prodigiosas) da morte prematura do grande cineasta baiano Glauber Rocha. Nascido em Vitória da Conquista (interior da Bahia) em 14 de março de 1939, Glauber veio a falecer com apenas 42 anos de idade. Não vou, aqui, falar de sua obra, pois muitos já escreveram sobre ela, inclusive este que vos fala. Mas rememorar alguns encontros que tive com ele em Salvador, Bahia.

Glauber Rocha, em 1979, no programa Abertura
Não sou da geração de Glauber, porque vim ao mundo (sem ter sido consultado para isso) em outubro de 1950, 11 anos depois do nascimento do artista. O primeiro impacto glauberiano, por assim dizer, deu-se quando adentrei a sala do majestoso cinema Guarany (aos 14 anos) para ver Deus e o diabo na terra do sol, quando a estupefação tomou conta do adolescente que era. Considero esse filme o maior de toda a história do cinema brasileiro. No documentário O Guarany, de Cláudio Marques, há um depoimento de Orlando Senna sobre a exibição especial do filme para uma plateia de convidados. Terminada a exibição, um silêncio ensurdecedor tomou conta da sala para, minutos depois, desabar um choro convulsivo em quase todos os presentes. Deus e o diabo na terra do sol constituiu uma virada de página, um halo renovador, um sopro de esperança na construção de um cinema nacional autêntico e empenhado em suas raízes.

Colunista diário do jornal soteropolitano Tribuna da Bahia, num tempo em que não havia e-mail, levava, de dois em dois dias, as minhas colunas para entregá-las, em mãos, na redação. Corria o ano de 1976. Outubro. Glauber Rocha estava na Bahia para já ir adiantando a produção de A idade da terra. João Ubaldo Ribeiro, muito amigo de Glauber, era o redator-chefe da Tribuna. Quando ia pegar o elevador, eis que encontro Ubaldo e Glauber também a esperar o ascensor. De repente, Ubaldo me apresenta a Glauber: "Glauber, conhece o nosso crítico de cinema?" Subimos, e, na redação, Ubaldo foi para o seu aquário, enquanto Glauber, em pé, ficou a conversar comigo, a querer saber o motivo de Os condenados, de Zelito Viana, baseado em Oswald de Andrade, não ter, ainda, sido lançado em Salvador. Depois a conversa versou sobre diversos assuntos relacionados ao cinema. Glauber se queixou da crítica que cobrava dele um filme superior a Deus e o diabo. Segundo o cineasta, e aplico aqui a minha memória, um filme é como uma relação amorosa sexual: cada um tem um momento de êxtase diferente.

Enquanto conversava com Glauber na redação da Tribuna da Bahia, João Ubaldo Ribeiro saiu do seu aquário para saber se Glauber tinha comprado um tênis, porque o que usava estava muito gasto. O cineasta de Terra em transe apontou para o pé e mostrou o seu luzidio tênis ao autor de Viva o povo brasileiro. "Comprei na Baixa do Sapateiro" (um comércio, naquela época, considerado de segunda classe).

Dia seguinte, o jornalista Carlos Borges me disse que à tarde, na sala da diretoria da Tribuna, iria fazer uma entrevista com Glauber, e me convidou para participar juntamente com João Ubaldo Ribeiro. Glauber passou a tarde toda falando, e soltava o verbo por confiança em seu amigo Ubaldo. A fita cassete, depois de transcrita para a publicação no dia seguinte, foi-me dada por Borges. É um depoimento impressionante e Glauber, inclusive, faz uma antecipação da morte (da sua?). A fita, emprestei-a para um extra do DVD de Barravento, e o vento sabiamente a levou embora.

Corria o ano de 1978. Junho. Época de Copa do Mundo. Em Salvador, por todo canto da cidade, baianas, em trajes típicos, com seus tabuleiros armados nas ruas e avenidas e praças vendem acarajé, abará, bolinhos de estudante, entre outros quitutes da culinária baiana. Estava na Avenida Sete, perto da Praça da Piedade, comprando um acarajé, quando uma pessoa me pegou pelas costas. "Como vai, rapaz?" Era Glauber Rocha. Perto de onde me encontrava existia, no Largo Dois de julho, o cine Capri, que incendiou em 1980. Ele me perguntou se a sala exibidora estava aberta, porque nos horários dos jogos da Copa geralmente os cinemas fecham. Não soube responder, e ele me disse que ia começar um jogo e queria entrar numa sala para ver qualquer filme. Depois, conversando mais alguma coisa, que não me lembro, avistei sua esposa colombiana que, já adiante, chamava Glauber para sair daquele ponto de acarajé.

Bem, apesar de não ver neste depoimento nada de relevante para contar, considerei, no entanto, os meus encontros com Glauber um acontecimento extraordinário. Embora morando na Bahia, não fui ver as filmagens de A idade da terra. Há um documentário, de Roque Araújo, que tem um arquivo precioso dos bastidores das filmagens do filme, principalmente a briga de Glauber com Valentin Calderon de La Barca, diretor do Museu de Arte Sacra, onde Glauber filmou atrizes e figurantes vestidos de freiras dentro do museu. Quando soube, Calderon foi impedir a continuação da rodagem, e Glauber, enfurecido, o ameaçou.

Glauber Rocha como pessoa não era um homem arrogante, mas um temperamento agitado, que, por vezes, dava a impressão de um adolescente com a febre natural da juventude, apesar de já um indivíduo com quase quarenta anos, quando o conheci. Explosivo, algumas vezes, contudo, revela-se meio sentimental e, noutras, com aquele espírito de lutador indomável. Na conversa, ainda que atencioso, falava o tempo todo e, na sua ânsia oratória, não ouvia bem as perguntas nem deixava ninguém falar.

Um dos melhores livros sobre o autor de O dragão da maldade contra o santo guerreiro é "Glauber, esse vulcão", do jornalista João Carlos Teixeira Gomes, amigo dele desde a juventude e mais conhecido como Joca, o Pena de Aço. Além da biografia, Joca faz também uma análise de seus principais filmes.

Em 1986, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, coordenei um seminário que se chamou "5 anos sem Glauber", com a participação de Luiz Carlos Maciel, Joca, Dona Lúcia Rocha, Fernando da Rocha Peres, Racquel Gerber, Jommard Muniz de Britto, Fernando Rocha, Antonio Guerra, entre outros. Naquela época, achava-se que o Brasil estava há muito tempo - vejam só: apenas 5 anos - sem a presença daquele que gostava de jogar vatapá no ventilador. Glauber Rocha, sobre ser um artista como realizador cinematográfico, era, antes de tudo, um agitador, um animador cultural. Que faz muita falta ao Brasil de hoje.

Fonte: Terra Magazine

Nota do Terra Magazine: André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba)

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